sábado, dezembro 02, 2006

Eu? (meio e fim)

Ok. Vamos lá. Entrem, tirem os tênis e fiquem à vontade... Essa história precisa de um fim. Da última vez em que eu escrevi nesse espaço havia uma criaturinha minúscula deitada no meu colchão, e presa nas minhas unhas. A miniatura. Ela continua lá...
* * *
Quando encostei minha mão do colchão, pude ver que a miniatura, fraca, já, deixou o corpo amolecer. Sentiu o tecido do lençol massagear as costas levemente e deu-se uns minutos, talvez de dor, talvez de NEUTRALIDADE, não sei. Mas por alguns minutos, ela parecia morta.
* * *
Morta de olhos abertos e respiração vagarosa e um olhar fixo me encava sem expressão e nada no pensamento e um silêncio no quarto e aquela coisa de ficar sem graça porque alguém te encara e tu não sabe o que fazer se olha pro lado se olha nos olhos se dá uma risada porque não era hora de dar risada afinal ali alguém devia sentir dor e isso me deixava encabulada e ao mesmo tempo me igualava à miniatura ela devia ter HUMANIDADE e sentimento que sente na PELE e nas sobrancelhas e no riso que vem no cantinho da boca mas ela não ria ficava muda e me envergonhava por conseguir me encarar e eu não conseguir manter uma linha pontilhada por onde minha visão caminhasse até a dela
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Comecei a empurrar de leve aquele corpinho que estava soterrado nas minhas unhas. E ele mal se movia, sabe? Dor, não sei se sentia, mas fechou os olhos e tentou ajudar. Aos poucos, e não sem pena, fui puxando pela cinturinha e, de tempos em tempos, dava uma parada pra não ser uma coisa tão BRUSCA e traumatizante. Fui descobrindo a delicadeza nos meus próprios gestos. “Vamos lá, de novo, só mais um pouquinho e tu vai estar livre de tudo isso. Faz um esforço e me ajuda a te ajudar.”
O último puxão foi mais severo, e acompanhado de um som abafado, de alguém que segura o grito, e que guarda a sensação de dor pra começar a aproveitar a liberdade novamente. Pronto. Agora EU era UMA, e ELA era OUTRA novamente. E nossas mãos não se tocavam mais.
A miniatura ficou ali, deitadinha por um tempo ainda na minha cama. Uma pontinha de sangue manchou o lençol e vi que alguém precisava de um curativo. Recortei em mil pedacinhos um esparadrapo, e o ALGODÃO nem sentiu a falta dos fios que foram removidos do rolo. Eis um curativo, que, embora envolvesse uma margem muito maior do que o local machucado, ajudou (gosto de pensar que). Novamente minha displicência, involuntária, quem sabe, em cuidar de algo tão pequeno.
* * *
Na verdade era a primeira vez que eu realmente via essa minha falta de tato como um defeito. Nunca fui de ter muitos cuidados com as pessoas. Sempre vivi só, e de mim nunca ninguém precisou cuidar muito. Era simples, sabe, viver. Era o que eu achava. Que isso de tocar, e sentir, passava despercebido. Eu era uma pessoa crua mesmo, que SENTIA quando sentia calor, que SENTIA quando sentia cócega, que SENTIA quando sentia o gelo derreter na mão, ou quando a gaveta caía sobre o dedão do pé. Era isso que eu sentia. Mas nunca senti um beijo de leve na testa ou um dedo que passeia sem rumo pelo braço, quase sem ser notado. Chego à conclusão de que talvez eu nunca tenha parado pra pensar nessas coisas. Comodismo, talvez. Mas todo esse processo de salvar uma criatura tão pequena revirou na minha cabeça tantos conceitos. Inclusive o de ter cuidado com alguém além de mim.
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A miniatura, depois de um dia tão agitado, pegou no sono. Deixei que dormisse, mas não me afastei do quarto. E se fugisse? E se caísse? E se MORRESSE? Fiquei observando por um tempo aquela vidinha esparramada na minha cama. Quando acordou, algumas GOTAS de leite foram o suficiente, e eu nem precisei comprar mais pão. E ela até umas palavrinhas soltou. Descobri que falava, e como adulta. E como adulta me agradeceu por ter sido gentil e ter tido cuidado. Ora, vejam só. Fiquei feliz.
Naquele dia não perguntei nada sobre a origem da miniatura, nem como ela havia parado ali. Se nasceu de mim, não sei. Por onde anda a família... Parece brincadeira, contando. Mas e se tivesse família? Não perguntei. Fui EGOÍSTA e resolvi desfrutar daquela companhia tão frágil e que me fazia sentir um pouco de poder, por ter alguém dependente de mim.

E assim foram os dias seguintes também. Com o tempo, fui me acostumando a acordar de manhã e olhar para o lado da minha cama. Ali eu havia montado uma casa, dessas de BONECAS, para a miniatura. Era ali que ela passava os seus dias de tédio, e geralmente no canto do corredor, entre a sala e o quarto da casinha, eu a encontrava sentada, a ler qualquer coisa, quando eu voltava do trabalho. Foi-se construindo uma relação de amizade, mas dessas de se olhar de longe, sem toques nem muitos abraços. Eu nunca me curaria dessa minha falta de sentidos, sei. Mas gostava da companhia daquele ser. Que talvez fosse eu.

Estranho eu nunca ter procurado uma explicação pra isso. Mas da mesma forma cômoda como aquele ser nunca me perguntou muito sobre a minha vida, eu também mantive uma curiosa distância. Éramos EU, e EU. EU grande, e EU pequena. EU dominante, e EU dominada.

Mas ela não me atrapalhava, e eu podia sentir que a casa não estava mais sozinha. Eu não era mais sozinha. Um dia cheguei em casa com um vaso de plantas e coloquei na janela. A casa precisava de verde, de COR, entende? A casa precisava respirar um pouco mais. E também não demorou muito pra que eu percebesse o bem que tudo aquilo estava me fazendo. O surpreendente havia feito meus dias menos INERTES.
Numa manhã acordei, olhei para a casa ali no chão, e as janelinhas estavam fechadas ainda, como de costume. Eu sempre acordava primeiro. Um depois do outro, levantei da minha cama. O trabalho me esperava. E no fim do dia, quando cheguei, percebi que as janelinhas continuavam fechadas, mas que na porta, tão pequena, havia um bilhete...
A AUSÊNCIA também é um sentido?

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