segunda-feira, novembro 13, 2006

Eu? (início...)

Foi com uma coceirinha na planta do meu pé que tudo começou. Assim, sem sentido mesmo, como todo o desenrolar da história.

Era uma cocegazinha corriqueira e banal. Deveria ser, pelo menos. Cocei. E nesse exato momento senti algo pequeno, talvez fino, mas frágil, ficar enroscado nas minhas unhas. Não só em uma, em duas. Um pedacinho da coisa estava preso debaixo da unha do dedo médio, e o restante dela, na unha do dedo vizinho. Trouxe a mão pra frente dos meus olhos, e tudo virou do avesso. Um arrepio subiu pela espinha e terminou nos pêlos do meu corpo. Era um serzinho. Não UM. Era EU, o serzinho. Uma criaturinha minúscula, e tinha cabelos! E pele, e orelhas, e dedinhos também. E o pior de tudo. Era exatamente igual a mim. Mas menor do que os meus dedos.

Era sonho... Certo que era sonho.
Não podia ser de verdade.
Não, não era sonho...
E eu nem tinha fumado nada, nem tinha tomado nada,
Eu nem tinha dormido!

A criaturinha, EU, sei lá quem, ficou ali, com os dedinhos presos debaixo das minhas unhas. Mania a minha de deixar as unhas compridas. Ela ficava ali, me olhando em súplicas. Era dor. Devia ser. Como eu ia saber?? Nunca tinha visto aquilo! Ela podia falar algo, mas não falava. Só ficava ali, se debatendo. Parecia uma formiga. Eu, pelo menos, falava. Se era minha cópia, deveria falar algo. Não sei de onde saiu, mas parecia ter nascido adulta já.
* * *
Eu era adulta, e a criaturinha também era... Isso me levava diretamente a outro pensamento. Se eu tenho mãe, a criaturinha deveria ter mãe também, e se eu tenho pai, a criaturinha também deveria ter, e eles certamente eram coisinhas pequenas assim, que nem ela. Quanto problema. Já imaginei um mundo cheio de criaturinhas, um micromundo, uma sociedade paralela de miniaturas móveis. Ia ser uma catástrofe, porque sendo menores, provavelmente as criaturinhas seriam dominadas por nós, seres humanos, originalmente humanos.

Tá. Chega. Por enquanto só vi um desses bichinhos. Então vamos pensar no singular e não no plural. Bem mais sensato pra chegar a alguma conclusão. Se é que ela existe...
* * *
A primeira coisa a fazer: livrar a coisinha das minhas unhas. Ela soltava gemidinhos agudos. Talvez estivesse chorando. Senti pena. Eu não gostava que sentissem pena de mim. Resolvi soltá-la logo. Mas era tão frágil. Eu nunca tive tato pra lidar com essas coisas que se quebram facilmente, ou que rasgam só com uma puxadinha. Encostei a mão em que a miniatura - vou chamá-la assim, daqui pra frente, depois arrumo um nome pra ela. O meu é que não vai ser. Encostei a mão em que a miniatura estava presa no meu colchão, e deixei que ela se encostasse nele também, pra ficar mais calma. Agora vinha a parte mais complicada...


(Eu volto logo, logo, para contar o resto)

domingo, novembro 05, 2006

Deitou e ficou ali, quietinho, enrolado no cobertor xadrez. Tentou fechar os olhos, mas achou melhor deixá-los abertos, para ver o momento em que ELES chegassem. Mexia as sobrancelhas, impaciente, tentando de alguma forma acomodá-las. Sempre pensou que sobrancelhas eram coisas sem utilidade nenhuma. Não tinham FUNÇÃO, nem protegiam contra nada. Estavam apenas ali, acima dos olhos, esses sim, essenciais. Mas SOBRANCELHAS? Para ele não fazia diferença tê-las ou não. Era apenas mais um peso que os olhos carregavam. Tinha o rosto inerte mesmo, sem expressão, sem grandes surpresas.

Os dedinhos tateavam a borda do cobertor, como se tentassem identificar alguma IMPERFEIÇÃO, algum fio solto, algo em que pudesse prender a atenção. Mas nada. A ansiedade tomava conta dos ouvidos e das idéias. Começou a roçar os pés um no outro, fazendo um SUTIL barulho de pele ÁSPERA e granulosa. Logo parou. Preferia o silêncio do quarto, com todos os seus microbarulhos. A madeira estalando. O vento criando vozes tristes e batendo na janela. O cupim gulosamente corroendo os móveis. E o silêncio.

Resolveu mudar de posição. Deitou-se de lado, com o olhar diretamente para a porta. Não agüentava mais esperar que ELES dessem algum sinal de vida. Não gostava de dormir sozinho. Encolheu as pernas, juntando os joelhos e abraçou o travesseiro. Fechou os olhos por um segundo, voltando a abrí-los logo em seguida. Definitivamente, queria vê-los quando chegassem. Sentir a forma, descobrir se tinham CHEIRO, se viriam vestidos ou despidos de pudores e CORES. Se ainda lembravam do passado. Desejava que não. Talvez lhe trouxessem chocolate. Não sentia o GOSTO doce disso há tanto tempo. Queria saber se tinham idade e tempo de vida delimitado também, porque sempre ouvia as pessoas dizerem que eles não duravam muito.

De repente, viu a porta abrir levemente. Não tinha certeza. Devia ser a ansiedade. Achou que estivesse vendo coisas. Talvez tenha deixado alguma janela aberta, e o vento esteja empurrando a porta. Não sabia se continuava olhando, se fechava os olhos. Na DÚVIDA, não os fechou. Queria ver! As PUPILAS dilatavam-se na escuridão do quarto, tentando identificar algo.

Ficou calmo e respirou fundo. Agora tinha CERTEZA. Eles estavam por perto. A porta abriu-se levemente, sem fazer ruído, formando uma pequena fenda por onde um rato poderia passar com sobra de ESPAÇO. Não precisavam de mais do que isso. Não via nada, embora olhasse fixamente para a porta. Forçava a visão, mas de nada adiantava. Só que podia sentir a presença deles. Sabia que estavam ali. Sentiu o corpo AMOLECER, aos poucos. E os músculos tornarem-se menos RÍGIDOS e sem força. Enfim, entregou-se. Fechou os olhos, e deixou que tomassem conta do resto. Efêmeros, assim como as pessoas diziam, e sem fazer grandes escândalos, os sonhos finalmente chegaram.